O papel do Estado na organização da violência na Venezuela

Mar 30, 2023 | 0 Comentarios

23 Junho 2020

Keymer Ávila | @Keymer_Avila

Parte 1: 33% dos homicídios que ocorreram no país são resultado da intervenção das forças de segurança.

Esta é a Parte 1 de uma série que responderá questões sobre segurança e violência na Venezuela

Em meados de fevereiro, conversei com Ayelén Oliva para o podcast “Qué pasa” de Nueva Sociedad sobre como a violência é organizada a partir do Estado. O transcript completo do programa, que compartilhamos com a socióloga Anais López e o economista Manuel Sutherland, está disponível em francês na página Contretemps. As perguntas de Ayelén são recorrentes entre diferentes atores e espaços, por isso decidimos fazer quatro entregas, uma para cada pergunta feita no podcast. Hoje começamos com a primeiro: Que papel tem o Estado na organização da violência na Venezuela? A violência, ou para ser mais preciso, as forças de segurança do Estado venezuelano, do ponto de vista formal, são configuradas da seguinte forma:

1) Temos a polícia civil preventiva ou uniformizada, em seus três níveis político-territoriais (municípios, estados, território nacional).

a) Mais de 123 polícias municipais. A Venezuela tem 335 municípios, mas nem todos contam com polícia própria. Nesses casos, a função policial é realizada por órgãos regionais ou nacionais. Nas disputadas eleições de 2017, o governo assumiu o controle de 305 prefeituras, o que significa que domina quase todas, se não todas, as forças policiais municipais.

(b) 23 policiais estaduais, que o governo também tem sob seu controle através dessas mesmas eleições. O governo controla 20 governos e intervém na polícia das três governadorias da oposição.

(c) E finalmente, está a Polícia Nacional Bolivariana, criada em 2009, à qual está ligada a Força de Ações Especiais (FAES).

Em 2017, esses órgãos tinham mais de 175 mil policiais, o que nos dá uma taxa de registro policial bem acima dos padrões internacionais. A média é de cerca de 350 policiais por 100 mil habitantes. Na Venezuela, estamos 207 pontos acima desse padrão. Em um período de 11 anos, o número de policiais cresceu 53%; estes são indicadores claros do progresso do Estado policial venezuelano.

2) Depois temos outros órgãos nacionais especializados:

a) Polícia Investigativa: Corpo de Investigações Científicas, Penais e Criminalísticas (CICPC)

(b) Polícia política: O Serviço Bolivariano de Inteligência (SEBIN).

3) Finalmente, temos a Força Armada Nacional Bolivariana, tradicionalmente e constitucionalmente composta por quatro componentes

a) O Exército

(b) A Marinha

(c) Aeronáutica

(d) A Guarda Nacional. Este último componente militar é o que vem desempenhando funções de polícia nacional de facto no país desde 1937.

(e) Existem as milícias, que têm sido objeto de debate desde a promulgação da nova Lei da Força Armada Bolivariana de janeiro de 2020, que as concebe como um componente “especial”. Esta é uma reforma da lei imposta pela Assembleia Nacional Constituinte desde 2017, que tem sido questionada por vários setores.

Apesar de sua curta história, a Polícia Nacional Bolivariana foi a segunda instituição mais letal do país em 2016 e 2017

A Força Armada Nacional Bolivariana também inclui a Diretoria Geral de Contrainteligência Militar (DGCIM), que foi denunciada por violações de direitos humanos de seus detentos.

O que é a FAES? Para que foram criadas as forças especiais? Como operam nos bairros mais pobres?

A Força de Ações Especiais é o grupo tático da Polícia Nacional Bolivariana. O que é um grupo tático?

Os “grupos táticos” ou “ações especiais” são formados por tropas – em princípio – previamente selecionadas e treinadas em táticas de assalto e combate, equipadas com armas e equipamentos especiais de natureza militar, que devem intervir somente em situações extremas e de alto risco, tais como sequestros, tomada de reféns, confrontos armados, detenções perigosas, etc. Esse tipo de situação costuma acontecer quando a polícia preventiva e de investigação está em desvantagem, tanto em qualidade quanto em quantidade, ou a operação exige a entrada em locais de difícil acesso para eles.

Estes grupos representam a expressão máxima dos critérios de intensidade em termos do uso de força letal, do manuseio de armas de guerra, bem como do treinamento correspondente, que é necessário em situações de máxima complexidade, consideradas extremas e muito excepcionais. O problema está na transferência dessas situações excepcionais para a prática rotineira das forças de segurança em geral, sem responsabilidade posterior ou justificação deste tipo de intervenção.

A FAES foi acionada em 14 de julho de 2017 pelo próprio presidente da República, com um discurso claramente bélico e político. Não podemos esquecer que 2017 foi o ano dos protestos em massa na Venezuela. Este é o contexto que serve de pano de fundo para a criação desse grupo tático.

Esses grupos geralmente operam durante a noite ou de madrugada, entrando em comunidades locais seguindo a lógica de tomada militar em território inimigo, em que as FAES atuam como um exército de ocupação e geralmente “caçam” seus alvos. Sua forma de proceder é essencialmente militar. Não é uma lógica de segurança cidadã na qual um delinquente deve ser impedido ou detido dentro do marco legal. No caso das FAES, entendem que têm que chegar a ‘eliminar’ ‘elementos’ – não pessoas, mas sim inimigos.

Em uma investigação que estamos realizando no momento, na qual estamos atualizando dados, podemos ver que, apesar de sua curta história, a Polícia Nacional Bolivariana foi a segunda instituição mais letal do país em 2016 e 2017. Entretanto, entre um ano e outro, observamos um aumento das mortes devido à sua intervenção.

Como podemos explicar esse aumento? Com a criação da FAES, em meados daquele ano. Nunca devemos perder de vista o fato de que quando falamos da FAES estamos falando também da Polícia Nacional Bolivariana.

E já em 2018, a Polícia Nacional Bolivariana alcançou o primeiro lugar como a agência policial mais letal, um posto historicamente ocupado pelo Corpo de Investigações Científicas, Penais e Criminalísticas (CICPC). Um aumento significativo pode ser visto no número de casos de mortes institucionais pela PNB entre 2016 e 2018, passando de 19% do número total de casos para 45%. Ou seja, a CICPC é responsável por 83% das mortes devidas à intervenção da PNB. Estamos falando de pelo menos 1.300 mortes nos últimos três anos. Entretanto, estes são os casos registrados pela mídia, que representam apenas 25% dos casos oficialmente reconhecidos. Isso significa que se tomarmos o número oficial, que em 2018 foi de 5.287 mortes pelas mãos da polícia, facilmente, o número de mortes causadas somente por essa divisão naquele ano poderia ser de cerca de 1.700.

Na Venezuela, 33% dos homicídios que ocorreram no país são resultado da intervenção das forças de segurança do Estado. Todos os dias, 14 jovens pobres morrem pelas mãos da polícia.

A Parte 2 responderá o que são as milícias e os coletivos.

Publicado originalmente en Open Democracy.

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