3 Julho 2020
Keymer Ávila | @Keymer_Avila
Parte 2: Na Venezuela, a violência é organizada pelo Estado e também através de milícias e coletivos. O que são?
Veja a Parte 1 desta série aqui
As milícias
Até 2008, na Venezuela, as chamadas milícias nada mais eram do que reservistas voluntários que podiam complementar ou apoiar a Força Armada Nacional (FAN) em casos extremos ou de emergência. Após essa data, eles passam a receber mais espaço institucional. Eles começam a desempenhar tarefas de Defesa Integral da Nação, que podem ser qualquer coisa, uma vez que é um conceito bastante amplo e flexível.
Pelo que pode ser visto na vida cotidiana, os critérios de recrutamento e seleção são muito baixos – qualquer pessoa pode se inscrever – e é comum ver idosos com esses uniformes nas ruas ou cumprindo pequenas tarefas em estabelecimentos públicos. Não se sabe até que ponto poderia ser um recurso de propaganda para ampliar a força militar.
Em novembro de 2019, funcionários do governo disseram que o número de milicianos era de 3,3 milhões, mas seria um exagero afirmar que operam como um exército profissional, capaz de lidar com situações que justificam a defesa militar do território.
Como já comentamos na Parte 1 desta série, em janeiro foi anunciado que, através da reforma regulatória introduzida pela criticada Assembleia Nacional Constituinte, as milícias são consideradas o quinto componente da Força Armada Nacional (FAN). Mas ainda não está claro quais reais capacidades institucionais possuem. Nos últimos 15 anos, a lei já passou por seis reformas.
Uma das dimensões mais preocupantes, além da desprofissionalização da Força Armada Nacional, é a ideia da união cívico-militar, que acaba sendo mais militar do que cívica. Nesse contexto, vale destacar o trabalho de inteligência que pode ser dado às milícias em diferentes espaços partidários de natureza comunitária, como Conselhos Comunitários, Comitês Locais de Abastecimento e Alimentação (CLAP, encarregados de distribuir caixas com carboidratos e óleo vegetal dos quais muitas pessoas dependem) e as Redes de Articulação e Ação Sócio-Política (RAAS), estabelecidas como diferentes dispositivos de controle social e disciplinares, espaços de vigilância e extensão de bairro, unidades de policiamento e militarização da sociedade a partir dos espaços menores e mais básicos da comunidade.
Esses dispositivos foram usados de maneira eficaz em janeiro de 2019 contra manifestantes em bairros pobres. Em menos de uma semana, cerca de 45 pessoas morreram, das quais 26 supostamente foram mortas a tiros por membros das forças de segurança ou grupos armados pró-governo, e muitos outros foram presos após participar dos protestos.
“Coletivo”, no contexto atual de “civis armados”, pode ser qualquer coisa: funcionários civis, criminosos comuns, grupos parapoliciais ou paramilitares, ou uma mistura de todos as alternativas anteriores
Naqueles dias, mais de 800 pessoas foram detidas e muitas vítimas reportam que as RAAS e as CLAP forneceram as informações para que as forças de segurança fossem diretamente às casas dos manifestantes.
Os coletivos
O conceito de coletivos também é bastante amplo, podendo significar qualquer coisa que o analista ou jornalista queira interpretar. Em uma possibilidade, “coletivos” podem ser espaços de organização social com atividades e objetivos muito diversos, podendo ser culturais, artísticos ou políticos. Em outro sentido, a partir da retórica da mídia política do país, esse termo é usado para se referir a qualquer civil armado.
Vamos por partes. Existem organizações que têm funções políticas e culturais louváveis, que não devem ser confundidos com organizações político-militares.
Por outro lado, existem grupos minoritários, cada vez menores, muito heterogêneos, que se originaram em alguns bairros de Caracas no final dos anos 80 para confrontar grupos criminosos. Alguns se politizaram, juntaram-se a veteranos de confrontos armados, e alinharam-se ao governo. Do ponto de vista simbólico, esses grupos tiveram muita visibilidade, especialmente no momento do golpe contra o presidente Hugo Chávez. Mas, desde então, eles têm tido batalhas e conflitos entre si, por diferentes razões, e, como tal, vêm diminuindo em número.
Finalmente, a maioria dos chamados coletivos, com poder real, estão compostos por policiais e militares que atuam como civis e fazem o trabalho sujo. Esses são os mais comuns, aqueles que geralmente aparecem em vídeos de repressão contra manifestantes. Por outro lado, também há oficiais das forças de segurança que se desmobilizam e organizam ou “escoltam grupos” que ninguém sabe como são regulados.
As situações geradas por esses funcionários civis são instrumentalizadas pelo governo, usando preconceitos de classe, raça e também ideológicos para exagerar esses atos ilegais e apresentá-los como “coletivos” populares leais à revolução. O sensacionalismo do jornalismo e dos setores da oposição responde de maneira altamente funcional ao governo, uma vez que imobiliza e apavora a oposição em geral com esses relatos.
Ou seja, quando falamos de coletivos, nos referindo a uma mistura que envolve muita propaganda partidária e sensacionalismo jornalístico, que tem uma base real de policiais e oficiais militares que agem como civis fazendo trabalho sujo para o governo e alguns grupos de civis armados que inclui um pouco de tudo – alguns politizados, outros nem tanto, que podem servir a qualquer um, incluindo alguns setores do submundo do crime.
Em suma, “coletivo”, no contexto atual de “civis armados”, pode ser qualquer coisa: funcionários civis, criminosos comuns, grupos parapoliciais ou paramilitares, ou uma mistura de todos as alternativas anteriores. Podem causar muitos danos e, em seguida, culpar o adversário político, uma espécie de mercenário que trabalha pela melhor proposta.
Mas esses grupos também podem ter sua própria agenda. Mas sem evidências ou trabalhos de pesquisa sérios, temos apenas hipóteses e especulações. Os coletivos são difíceis de generalizar e seria necessário estudar casos específicos de acordo com circunstâncias locais muito específicas.
Publicado originalmente en Open Democracy.