14 Setembro 2020
Keymer Ávila | @Keymer_Avila
O caso da Venezuela mostra como a pandemia pode ser politicamente instrumentalizada, servindo como um dispositivo securitário para o exercício do poder ilimitado.
Apandemia de Covid-19 não é apenas um problema sanitário. É também um importante dispositivo de segurança e disciplina, uma vez que o medo do contágio faz com que as pessoas cedam aos controles e à vigilância a fim de garantir sua própria sobrevivência. A docilidade aumenta à medida que as evidências médicas e científicas confirmam o perigo.
O pânico nos faz ceder todos os nossos direitos ao velho e desgastado Leviatã para nos proteger deste novo mal absoluto. Novamente – mas agora em outra escala – ele precisará de plenos poderes para lidar com esta ameaça. Tempos excepcionais exigem medidas excepcionais em todas as áreas, especialmente nos campos regulatório, tecnológico e de segurança. Entretanto, não devemos perder de vista o fato de que quanto menos capacidade sanitária e científica houver, maiores serão as medidas policiais, militares e de propaganda. Sempre serão feitos esforços para confundir o primeiro com o segundo. Quando a saúde se torna uma questão de segurança nacional, tudo é impregnado com a lógica do castigo, das forças armadas e da guerra.
Uma vez terminada a pandemia em termos de saúde, os mecanismos de controle implantados serão difíceis de reverter. É possível que eles permaneçam entre nós muito mais do que o próprio vírus que serve de pretexto.
Recentemente, publicamos uma análise sobre estas questões para a Friedrich Ebert Stiftung (FES), em que nos concentramos na lógica securitária por trás das tentativas de conter a Covid-19, que vai além do vírus que a gera. Refletimos sobre como a pandemia pode ser politicamente instrumentalizada, servindo como um dispositivo securitário para o exercício do poder ilimitado que se amplia e institucionaliza, reduzindo os direitos dos cidadãos. Tomamos o caso venezuelano como objeto de estudo.
O caso venezuelano como objeto de estudo
A Venezuela vive em estado de exceção há anos. No seu caso, a “quarentena” antecede a Covid-19 e a pandemia opera, então, como uma extensão e justificativa de um governo que já está em vigor há algum tempo.
Para os venezuelanos, as forças de segurança do Estado são cinco vezes mais letais do que a pandemia que está varrendo o mundo
Desde 2015, o governo decretou estado de exceção pelo menos dez vezes a nível nacional. O decreto do estado de alerta de 13 de março de 2020 para lidar com a emergência sanitária da Covid-19 nada mais é do que a continuação do estado de exceção que existe ininterruptamente no país há mais de quatro anos. Além da sua inconstitucionalidade e da evasão dos controles necessários (pela Assembleia Nacional e pelo próprio Tribunal Supremo de Justiça), este é um ato em que o próprio presidente se autoriza a tomar qualquer medida que considere discricionária, incluindo a possibilidade de delegar este poder a funcionários subordinados. E, neste contexto, as forças de segurança podem “tomar todas as precauções necessárias” para cumprir este decreto.
A excepcionalidade no país não é apenas político-institucional e normativa; ela também faz parte da vida cotidiana dos venezuelanos. A deterioração dos serviços públicos básicos como água, eletricidade, saúde, transporte, gasolina e internet está aumentando. A infraestrutura de serviços necessária para atender efetivamente os direitos sociais, especialmente o sistema de saúde, já havia entrado em colapso antes da chegada da Covid-19.
Em primeiro lugar, o cenário descrito acima levanta a questão: como podemos exigir que uma população que mal não consegue viver com seu salário, que tem que ganhar seu pão de cada dia nas ruas, fique em casa durante meses? Durante os dois primeiros meses da quarentena, houve mais de 1.700 protestos exigindo direitos sociais em todo o país. Houve também 44 relatos de saques em nove estados.
Mais mortal que a Covid-19
Durante os primeiros cinco meses de quarentena – um período em que se esperava que a redução na mobilidade social também reduzisse a violência nas ruas – mais de 1.171 pessoas morreram nas mãos das forças de segurança do Estado. São oito mortes por dia, o que não choca ninguém. No mesmo período, segundo dados oficiais, a Covid-19 matou 259 pessoas, ou seja, duas pessoas por dia. Até agora, para os venezuelanos, as forças de segurança do Estado são cinco vezes mais letais do que a pandemia que está varrendo o mundo.
O discurso oficial estigmatiza e criminaliza migrantes retornados, chegando ao ponto de rotulá-los como “bioterroristas” ou “armas biológicas” do governo colombiano
Diante das violações do direito à vida que ocorrem, é previsível que outras violações de direitos se desdobrem como resultado. Há muitos exemplos no caso venezuelano, entre eles as centenas de detenções arbitrárias (muitas delas motivadas por razões políticas), a situação das pessoas privadas de liberdade e a estigmatização e precarização em que se encontram os migrantes retornados.
Neste último caso, o discurso oficial estigmatiza e criminaliza estes grupos humanos, apontando-os como bodes expiatórios e portadores de todo tipo de males, chegando ao ponto de rotulá-los como “bioterroristas” ou “armas biológicas” do governo colombiano, usados para contaminar os venezuelanos. Processos desumanizantes que permitem violações em massa dos direitos humanos desses grupos.
A pandemia gera múltiplas funcionalidades para qualquer estado autoritário, sendo a desculpa perfeita para o estado de exceção que se estende a nível global. O governo venezuelano não foge desta lógica; pelo contrário, ele a aproveita da melhor maneira que pode. Este tipo de situação reforça os regimes autoritários, já que servem como um instrumento para expandir seu poder e diminuir os direitos dos cidadãos. Assim, por exemplo, eles põem um fim às reuniões, concentrações, manifestações e qualquer forma de resistência nas ruas.
Diante de novas formas de dominação, haverá também novas formas de resistência. Liberdade, igualdade, não discriminação, juntamente com a luta pela redistribuição de recursos, saúde pública e nossa relação com o meio ambiente são novamente objetos de disputa. Estes parecem ser os desafios diante desta pandemia totalitária global, na qual as diferenças ideológicas e partidárias dos governantes da época não se distinguem mais claramente, porque finalmente coincidem em seus objetivos pragmáticos. Apenas alguns o escondem melhor do que outros.
Para ver o estudo completo, clique nos links abaixo: https://www.academia.edu/43997305/_Qu%C3%A9_es_m%C3%A1s_mortal_en_Venezuela_sus_fuerzas_de_seguridad_o_el_COVID_19_Inquietudes_securitarias_en_tiempos_de_pandemia
http://www.ildis.org.ve/website/administrador/uploads/DemoraciaySeguridadCovidKavila1.pdf
Publicado originalmente en Open Democracy.