Uso da força letal na América Latina: uma sinistra prioridade política

Mar 29, 2023 | 0 Comentarios

11 Setembro 2019

Keymer Ávila | @Keymer_Avila

uso da força letal pelos agentes do Estado faz parte da agenda prioritária de vários países da região. Os números que circulam são bastante alarmantes. Mas o que exatamente está acontecendo?

Para responder a essa pergunta, surge a iniciativa do Monitor de Uso de Força Letal, que reúne pesquisadores e acadêmicos de cinco países (Brasil, Colômbia, El Salvador, México e Venezuela). Nesse espaço, indicadores e metodologias comuns foram construídos para medir, analisar e entender o uso e o abuso da força letal em uma perspectiva comparativa, com o objetivo de encontrar evidências que sirvam de insumo para a prevenção de abusos, bem como maior segurança dos cidadãos e dos próprios funcionários.

Neste artigo, apresento um resumo dos principais resultados da análise regional que preparamos em conjunto com Carlos Silva (Instituto de Pesquisa Jurídica da UNAM), Catalina Pérez Correa (CIDE) e Ignacio Cano (Laboratório de Análise da Violência da Universidade do Estado do Rio de Janeiro).

O primeiro a se observar é a dificuldade em encontrar informações de qualidade que permitam a comparação de todos os indicadores acordados. No caso do México e da Venezuela, alguns dados tiveram que ser pesquisados através de notícias. Dessa forma, há uma falta de transparência dos Estados da região em relação a esta questão.

Segundo, a incidência de mortes de civis é extremamente alta na Venezuela, seguida por El Salvador. Na Venezuela, o número absoluto de pessoas mortas pelo Estado é ainda maior que no Brasil, apesar de ter uma população quase sete vezes menor.

A taxa de mortalidade de civis ultrapassa 15 em cada 100.000 habitantes, um recorde superior à taxa de homicídios na grande maioria dos países do mundo.

El Salvador, por outro lado, tem uma taxa de mais de 6 civis mortos pelo Estado e o Brasil de pouco mais de 2. Somente a Colômbia registra valores abaixo de 1. O caso do México é difícil de avaliar, pois a fonte é a imprensa. e apresenta um claro risco de subestimação.

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Em relação aos agentes do Estado vítimas de homicídio no exercício de suas funções, o quadro é muito diferente. O México é o país com o maior número absoluto de vítimas e a taxa por 1.000 agentes mais alta (0,5). Logo seguem a Colômbia e Venezuela (0,3 c / u), embora neste último caso a fonte seja a imprensa. Brasil e El Salvador têm a menor incidência (0,1 c / u).

Os indicadores de abuso de força revelam um cenário preocupante em vários dos países estudados.

O caso extremo é a Venezuela, onde mais de um quarto dos homicídios se deve à intervenção de agentes do Estado.

El Salvador também excede o limite de 10% associado ao abuso de força. O Brasil possui um indicador mais moderado, mas ainda alto (7,3%).

Somente a Colômbia revela valores reduzidos (1,5%). No caso mexicano, como mencionado anteriormente, a fonte jornalística não permite uma comparação com o resto dos países.

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A proporção entre civis e agentes públicos mortos atinge valores alarmantes em El Salvador, onde mais de 100 civis morrem por cada agente falecido. No Brasil, o valor é mais baixo, mas ainda é muito alto: 58 civis para cada agente.

Por seu lado, a Colômbia tem um valor muito pequeno (1,2), o que indicaria que o número de mortes é aproximadamente igual nos dois grupos. A Venezuela tem valores muito altos (26) para esse indicador, mas, como no México, sua fonte era jornalística.

O cálculo do índice de letalidade só foi possível no México e na Venezuela, em ambos os casos com base em informações da imprensa. Os dois são maiores que 1, que é o limite aceitável. No caso da Venezuela, eram 16 e no México, 4,6, mas não se pode esquecer que a fonte jornalística tende a superestimar esse indicador.

A taxa de letalidade, que sofre de problemas semelhantes, mostra neste caso o México no pior lugar (10) comparado à Venezuela (5,7). Isso significaria que a letalidade causada pelos agentes do Estado é 10 vezes maior que a gerada por seus oponentes no México e quase seis vezes maior no caso da Venezuela. Ou seja, os indicadores mostrariam que não há risco proporcional ao uso da força letal.

Em suma, as informações obtidas por este estudo nos permitem chegar a duas conclusões. A primeira é a transparência limitada sobre o uso da força letal na América Latina e, como resultado, a necessidade de exigir a divulgação pública e regular dos dados relevantes que permitem o monitoramento específico desses casos.

A segunda conclusão é que os dados apontam para o uso excessivo da força em vários países da região, com a Venezuela na posição mais dramática, seguida por El Salvador. Todos os países analisados, com exceção da Colômbia, excedem limites aceitáveis em pelo menos um dos indicadores de abuso de força considerados.

É urgente, portanto, que os governos e a sociedade civil busquem modificar esse cenário grave.

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Os casos da Colômbia e do México

Considero, em particular, que o caso da Colômbia e do México merece comentários separados, que não estão presentes no relatório mencionado e, consequentemente, não comprometem o grupo de investigação, pois são de minha inteira responsabilidade.

No capítulo sobre a Colômbia, a história de violência que o país sofre há décadas fica claramente refletida: guerra, narcotráfico, assassinato de aluguel, paramilitarismo, execuções extrajudiciais, desaparecimentos, entre tantos outros exemplos.

Não é em vão que ações contra algumas de suas autoridades foram questionadas diante do Tribunal Penal Internacional. Recentemente, o Alto Comissariado das Nações Unidas para a Colômbia denunciou que, no ano em estudo (2017), esse tipo de crime de Estado continuou acontecendo no país e questionou as promoções de oficiais vinculados a casos de “falsos positivos” (execuções extrajudiciais). Apesar da assinatura e aprovação do Acordo de Paz em 2016, as queixas sobre assassinato de centenas de líderes sociais não cessaram.

Há apenas alguns meses, o New York Times publicou um artigo denunciando o assassinato de mais de 130 ex-membros das FARC desde a assinatura do Acordo de Paz, bem como a emissão de ordens oficiais instruindo a “dobrar os resultados” de “renúncias, detenções e execuções durante operações militares”. Em suma, as informações oficiais não são completas ou confiáveis.

Conforme explicado no capítulo acima mencionado: “a critério, a Polícia está manipulando números para obter resultados operacionais favoráveis e removendo os casos de homicídio que devem ser registrados, mesmo que eles fizessem parte de operações realizadas com uso legítimo da força, em defesa da população ”(pp. 59-60).

Em 60,5% dos casos de homicídio na Colômbia, as informações sobre o suposto autor são desconhecidas (p.63). Por outro lado, a existência de grupos armados de natureza diversa, formais e informais, legais ou ilegais, que às vezes se confundem e se fundem, merece que a análise seja muito mais complexa, pois é difícil construir os dados e obter informações mais precisas, de modo a ter uma visão mais clara da situação do uso da força letal neste país.

O caso mexicano apresenta dificuldades semelhantes: informações oficiais inexistentes, em outros casos incompletas, dispersas, precárias e não confiáveis, em um contexto bélico, onde o tráfico de drogas, a guerra, uma situação extrema na fronteira e as alegações de milhares de desaparecimentos forçados são mais frequente (sem cadáveres, homicídios não podem ser registrados).

Apesar da expansão da lógica militar, a lógica do sistema federal é uma em que cada instituição é administrada como um feudo específico, onde as forças armadas não são responsáveis nem estão sujeitas a maiores controles. Parece que os esforços das várias investigações independentes realizadas não atingem a extensão ou as dimensões reais do uso da força letal no México.

Por essas razões, o mais provável é que os casos colombiano e mexicano geralmente são apresentados de maneira diminuída, tímida e sub-representada quando essas questões são abordadas em perspectiva comparativa. Sem dúvida, a situação na Venezuela é muito séria, mas possivelmente a diferença que a separa desses países é menor que a apresentada no relatório.

Recomendações

O relatório termina com algumas recomendações gerais:

Transparência: deve haver um registro preciso e detalhado das pessoas mortas e feridas em incidentes envolvendo membros das forças de segurança do Estado. Também é essencial que esses dados sejam divulgados regularmente, para que seja possível monitorar o fenômeno e tomar, quando apropriado, medidas preventivas ou corretivas.

Regulamentação do uso da força: deve estar incluída em uma norma específica e amplamente divulgada que incorpore padrões internacionais de doutrina, equipamento, capacitação e treinamento. A Venezuela possui regulamentos alinhados aos princípios internacionais, mas isso não se aplica, o que demonstra que não basta apenas ter uma boa legislação, é necessário, além disso, toda uma instituição que os aplique.

Investigação dos incidentes de uso da força letal: cada incidente de uso da força letal que resulta em vítimas deve ser devidamente registrado e dar origem a uma investigação rigorosa, que garanta que esse uso da força respeite os princípios legais.

As mortes em mãos de agentes do Estado devem ser inicialmente classificadas como homicídios, independentemente da possível existência ou não de exclusão de ilegalidade pelos agentes do Estado, de modo que a legalidade da ação seja estabelecida a posteriori como resultado da investigação.

Por sua vez, a investigação dos fatos deve ser realizada por membros de instituições que não sejam os que participaram da ação, para garantir a independência da investigação.

A investigação deve contemplar não apenas os autores materiais de possíveis violações dos direitos humanos, mas também as responsabilidades da cadeia de comando. Por outro lado, as possíveis vítimas, seus familiares e testemunhas devem receber a proteção do Estado e, nos casos em que o crime é comprovado, devem receber uma compensação adequada.

Medidas de monitoramento e prevenção: os Estados devem criar e promover mecanismos para monitorar e prevenir o uso abusivo da força letal.


Publicado originalmente en Open Democracy.

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