19 Agosto 2019
Keymer Ávila | @Keymer_Avila
O recente relatório da ONU chocou a opinião pública internacional ao apresentar números oficiais de homicídios e mortes nas mãos do Estado no ano de 2018, cifras até agora desconhecidas.
O Relatório do Escritório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ACNUDH) sobre a Venezuela gerou numerosos debates sobre a situação dos direitos civis e políticos no país. Uma das muitas contribuições do relatório patrocinado pela ex-presidente chilena Michelle Bachelet é a apresentação dos números oficiais de homicídios e mortes nas mãos das forças de segurança do Estado para o ano de 2018, até então desconhecidas.
O governo venezuelano relatou um total de 10.598 homicídios em 2018. Este número, como o de 2017, não inclui casos de mortes nas mãos das forças de segurança do Estado (consideradas “resistência à autoridade“). Essa exclusão afeta o número de homicídios apresentados, sendo um terço menor que o total. Omitir as mortes nas mãos das forças de segurança não é apenas uma maquiar os números totais, é também uma ocultação e uma naturalização de graves violações dos direitos humanos. Quando as mortes resultantes da intervenção das forças de segurança do estado, totalizando 5.287, são adicionadas à conta, o número total de homicídios de acordo com esses números oficiais é de 15.885.
Conforme explicado em outras oportunidades e ratificado pelo relatório acima mencionado, a tendência geral de mortes nas mãos das forças de segurança do Estado nos últimos anos é de um claro aumento. Segundo dados oficiais fornecidos pelo governo ao OHCHR, em 2018, 33% dos homicídios no país foram consequência da intervenção da força pública. Trata-se da vida de 5.287 jovens venezuelanos de classe trabalhadora mortos por policiais. Ou seja, na Venezuela 15 jovens morrem todos os dias nas mãos de forças de segurança.
A porcentagem que essas mortes ocupam dentro do total de homicídios no país está aumentando: em 2010, foi de apenas 4%, mas oito anos depois, chega a 33%. Isso significa que atualmente um em cada três homicídios ocorridos no país é consequência da intervenção das forças de segurança do Estado.
Para se ter uma ideia das dimensões do que está acontecendo na Venezuela, contrastamos a situação com a do Brasil, um país com uma população sete vezes maior. Em 2016, 4.222 pessoas morreram no Brasil devido à intervenção da força pública, o que representa 7,8% do total de homicídios. Esses valores são muito inferiores aos da Venezuela, tanto em número de vítimas quanto no percentual que representam dentro do total de homicídios no país.
Pode-se afirmar com certeza que, na Venezuela, entre 2010 e 2018, período em que está disponível a melhor informação sistematizada e contínua, cerca de 23.688 pessoas morreram nas mãos das forças de segurança do Estado. 69% destes casos ocorreram nos últimos 3 anos.
É preocupante o boom das políticas de pulso firme em grande parte da região, expresso em forças policiais que não respeitam quaisquer limites legais ou institucionais, e que têm como alvo populações marginalizadas e minorias étnicas. Países diferentes entre si, como Brasil, Venezuela, Colômbia, Honduras, El Salvador e México, destacam-se pela militarização de suas políticas de segurança cidadã, bem como pelas milhares de mortes que suas forças de segurança geraram nos últimos anos. A denúncia de casos tão sérios quanto os assassinatos de Marielle Franco, Berta Cáceres, Sabino Romero, as centenas de líderes sociais colombianos – o número de assassinatos após os acordos de paz aumentou -, o desaparecimento dos 43 de Ayotzinapa ou Alcedo Mora são apenas os casos mais conhecidos.
Determinar quem ocupa o desonrosos topo da lista seria difícil e um exercício que, sem dúvida, seria moldado por interesses partidários. Além disso, o acesso aos números é difícil e, quando existentes, a informação não é confiável.
Segundo dados oficiais, o número de mortos pelas forças de segurança do Estado varia entre 16 e 19 pessoas por 100.000 habitantes
Brasil, Jamaica, El Salvador e Venezuela são os países com as agências de segurança mais mortais do continente. Essa conclusão surge da comparação entre a investigação recente de Anneke Osse e Ignacio Cano e as últimas informações oficiais geradas pelas autoridades venezuelanas incorporadas no relatório do OHCHR. Por outro lado, é importante ressaltar que os casos da Colômbia e do México parecem ser tão sérios que os pesquisadores – em geral – têm dificuldade em ter uma visão da real magnitude do que está acontecendo nesses países.
Na pesquisa de Osse e Cano, as taxas são calculadas para cada 100.000 habitantes de pessoas mortas por armas de fogo nas mãos da polícia em onze países em todos os continentes. Para o seu relatório, eles usaram diferentes tipos de fontes: estudos internacionais, publicações de órgãos de controle da polícia, análise de organizações não-governamentais, estudos acadêmicos e fontes oficiais. Os países que obtiveram as maiores taxas foram El Salvador (5,2), Jamaica (4,1), Brasil (2) e África do Sul (0,6).
Devido à diversidade de fontes, é difícil fazer uma comparação rigorosa entre esses números e as taxas calculadas para a Venezuela nos últimos três anos. Segundo dados oficiais, o número de mortos pelas forças de segurança do Estado varia entre 16 e 19 pessoas por 100.000 habitantes. Esses resultados colocam a Venezuela entre os países com as maiores taxas de letalidade policial, tanto regional quanto globalmente.
Apesar desses dados, alguns setores da esquerda ortodoxa – que ainda não superaram a lógica da Guerra Fria – apelam à solidariedade automática. Eles têm uma lógica negacionista, justificadora e de propaganda muito prejudicial que os deslegitima. Esses setores, cada vez mais minoritários, quando não justificam, legitimam ou relativizam o que está acontecendo na Venezuela, simplesmente ficam quietos ou olham para o outro lado. Devido a essa atitude de um setor da esquerda, atualmente são os setores mais liberais que acabam assumindo as lutas contra a repressão do Estado, levantando as bandeiras dos direitos humanos e dos direitos das minorias.
Alguns setores e grupos perseguidos no passado agora surgem como perseguidores, e justificam suas ações atuais “porque no passado também foi feito contra eles” ou porque “outros também o fizeram”. Eles tentam fazer comparações e gradações, argumentam que “antes era feito mais” e que agora é “menos pior”, que o vizinho “também o faz”. Com tanta imaturidade e irresponsabilidade tentam legitimar suas misérias atuais. Agem como crianças repreendidas que tentam se defender dedurando outros, e insistem que existe uma perseguição contra eles.
É muito preocupante que os que estão atualmente sendo perseguidos possam ser os futuros perseguidores, numa lógica circular que é, em última instância, sobre a tentativa de obter o controle da enorme riqueza petrolífera da Venezuela.
Uma das justificativas mais comuns para a violência do Estado é a luta contra o “terrorismo”, o estado de “guerra” permanente, um estado de exceção onde tudo vale. Um argumento muito similar àqueles feitos pelos ditadores da América do Sul que dizem ter feito o necessário para livrar seus países do “comunismo”. Agora parece que tudo pode ser justificado na luta contra o “imperialismo”. É claro que este não é o caso de todo o imperialismo: no caso da China e da Rússia, eles olham para o outro lado.
Esta é uma maneira de justificar o comportamento parecido ao do “inimigo“, que às vezes significa cometer atrocidades ainda piores. Na criminologia, isso é conhecido como “técnicas de neutralização”. Existem 5 técnicas envolvidas na neutralização, como explicado por David Matza e Gresham Sykes há mais de 60 anos: a negação de responsabilidade, a negação de danos, a negação da vítima, a condenação dos condenados e o apelo a maiores lealdades ou valores superiores. Essas técnicas tentam preservar a auto-imagem enquanto estão agindo de maneiras contrárias aos valores que são realmente endossados. Isso significa se entregar primeiro à autojustificação antes de justificar suas ações para os outros. É uma maneira de neutralizar os valores e torna qualquer sentimento de culpa e vergonha mais suportável.
Não devemos perder de vista que os Estados terroristas são os que têm o discurso antiterrorista mais forte
Usando este quadro teórico, Eugenio Raúl Zaffaroni explicou como algumas pessoas justificam crimes estatais através de exemplos históricos: colonialismo, nazismo, stalinismo e segurança nacional. “Essa técnica é usada quando se afirma que em toda guerra há mortes, que inocentes em todo lugar sofrem, que erros são inevitáveis, excessos não podem ser controlados, etc”.
Isso pode ser visto quando as pessoas justificam os assassinatos de presos políticos sob a custódia do Estado venezuelano, dos quais há pelo menos 5 casos desde 2015, todos eles referidos como “terroristas” pelo Estado. Existe uma lógica semelhante que justifica o massacre de milhares de jovens, cujo principal crime é ser pobre. Isso vem acontecendo há anos na Venezuela e é um campo de testes para aplicá-lo posteriormente a outro grupo de maneiras diferentes, com base no status social do destinatário.
Finalmente, não devemos perder de vista que os estados terroristas são os que têm o discurso antiterrorista mais forte. O terrorismo é uma expressão definida pelos poderosos com seus próprios interesses em vista. Usando essa estrutura, qualquer um pode ser um terrorista e é um jogo que pode nos levar para o abismo.
Publicado originalmente en Open Democracy.