17 de julio de 2015
Samy Adghirni
A chuva cai em uma noite abafada sobre Petare, uma das maiores e mais perigosas favelas da Venezuela. As ruas ainda estão cheias quando uma patrulha da Polimiranda, a polícia estadual local, abre caminho entre camelôs e barracas de comida para subir em direção aos morros que dominam o leste de Caracas.
A tensão cresce à medida em que as duas picapes e três motos, levando nove agentes, avançam pela ladeira em uma área que se tornou sinônimo de terror para a polícia.
Os morros de Petare, percorridos pela Folha na última sexta (10), são um dos palcos da matança de policiais em curso na Venezuela.
Especialistas alertam que, sem cifras oficiais, não é possível avaliar o fenômeno com precisão: dados compilados por jornalistas indicam que o número de policiais assassinados de 2012 a 2014 passou de 104 para 230; já na conta da ONG Fundepro, foram 83 mortes em 2011 e 338 em 2014.
Só em Caracas, 64 policiais foram assassinados em 2014, segundo raro dado oficial.
No mesmo ano, no Estado de São Paulo, com população 50% maior que a da Venezuela, foram assassinados 79 policiais (excluídos PMs fora de serviço mortos de outubro a dezembro). Em maio de 2006, durante os ataques da facção PCC, 59 policiais e 505 civis foram mortos no Estado.
BANDOS
A diferença, segundo estudiosos, é que delinquentes na Venezuela não compõem crime organizado, mas pequenos bandos ultraviolentos.
“Podemos ser alvejados a qualquer momento”, avisa o policial que leva o repórter na garupa da moto por Petare.
Na primeira blitz do turno, um motoqueiro se exalta ao ser indagado por que não pagou multas pendentes. “Não paguei porque sou sem-vergonha mesmo, e daí?”
Um homem alcoolizado se aproxima de um policial para cumprimentá-lo e recebe um empurrão. O agente pede que colegas o revistem. “Muitos se fazem de gente boa para despistar”, diz um policial.
Sirenes e giroflex apagados, a patrulha segue. Nas ruas, pessoas bebendo cerveja e ouvindo reggaeton lançam olhares hostis antes de deixar o comboio passar. Alguns uivam, como sirenes.
POLÍCIA VENEZUELANA É ALVO DE ATAQUES
Policiais mortos em todo o país
A unidade faz uma pausa num pequeno posto policial. Na parede, há trechos da Bíblia e fotos de colegas mortos por delinquentes. “Funcionário do mês para sempre”, diz a frase sob um retrato.
Os policiais tomam café e logo saem. “Há dias recebemos ameaça de que bandidos lançarão granadas sobre este posto. Com frequência, passam de carro atirando.”
Na saída de Petare, uma moça se nega a abrir a bolsa e mostrar documento. “Quem não deve não teme”, diz um policial. Ela refuta, mas cede.
Após duas horas de ronda, os policiais retornam à base. Sem incidentes, desta vez.
O medo, porém, tomou conta dos agentes. Para minimizar riscos, patrulha-se em grupos mais numerosos. Nunca se deve andar de uniforme fora de serviço.
As conversas giram em torno das vítimas mais recentes. Um policial mostra na tela do celular o corpo de um colega sobre uma poça de sangue e vísceras. “Granada”, explica.
CORRUPÇÃO
Todas as polícias nacionais, estaduais e municipais sofreram baixas recentes.
Dias antes, dois agentes foram mortos com tiros à queima-roupa enquanto comiam cachorro-quente. Tiveram as armas roubadas, o que reforça a tese de muitos policiais de que a tentativa dos bandidos de aumentarem o arsenal é a maior razão dos ataques.
“Somos alvo desde que o governo proibiu o comércio de armas e munição, em 2012. Hoje, os delinquentes buscam nosso material”, diz o delegado Rafael Greterol. Uma pistola 9 mm custa 300 mil bolívares no mercado negro, ou 53 salários mínimos.
E há outros motivos: “Matar um policial traz prestígio entre bandidos”, diz Greterol.
Pesquisa de 2013 mostrou que 65% dos venezuelanos veem a polícia como entidade mais corrupta do país. O delegado afirma que essa imagem legitima ataques aos olhos de parte da população.
Assim, as deserções aumentam. Há um ano, o delegado tinha 206 pessoas sob seu comando. Hoje, são 160.
A maior parte dos policiais ouvidos pela reportagem ganha salário mínimo (o equivalente a US$ 20 no câmbio paralelo) e quer sair do ramo.
Todos reclamam de limites legais a suas ações. “Antes, se matavam um dos nossos, íamos em peso à favela e pegávamos o assassino, mas hoje os direitos humanos nos impedem de fazê-lo”, diz um oficial da polícia nacional.
Para o criminólogo Andrés Antillano, os ataques são uma reação a abusos policiais como execuções e extorsão.
Seu colega Keymar Ávila questiona o desequilíbrio entre esses abusos e a omissão nas “zonas de paz”, as favelas onde o governo estimulou o controle da segurança pelos próprios moradores.
Ávila também critica o surto de recrutamento da polícia nacional nos últimos anos, que colocou nas ruas agentes jovens e despreparados.
Policiais no país
Em milhares
A taxa oficial de homicídios no país é de 62 por 100 mil habitantes, atrás apenas de Honduras no mundo todo.
O governo federal, que não respondeu aos pedidos de entrevista para esta reportagem, já lançou 20 planos de paz. Nenhum teve sucesso.
Publicado originalmente en: Folha de S. Paulo